A Escola Pitagórica ou Itálica



A Escola Pitagórica ou Itálica (Prof. Dra. Marilena Chaui)

“Para compreendermos a Escola Pitagórica precisamos considerar dois acontecimentos que foram decisivos em sua instauração: 1) o processo emigratório da Ásia Menor para o Sul da Itália e para a Sicília, conhecidas, na época, como Magna Grécia; 2) a efervescência religiosa, de tipo dionisíaco, promovendo uma religiosidade de cunho místico e oracular.”

“O avanço dos persas sobre a Jônia nos meados do século VI a.C., ocasionou uma série de migrações da Ásia Menor rumo ao Sul da Itália e à Sicília, para as colônias gregas da Magna Grécia. Esse deslocamento teve dois efeitos principais sobre a filosofia nascente. Em primeiro lugar, o desenvolvimento filosófico, que se fizera naturalmente e sem conflitos na Jônia, como consequência natural de suas condições sociais, econômicas, religiosas e políticas, encontrará, agora, barreiras e dificuldades, pois a sociedade onde os exilados filósofos vêm se instalar não possuía as mesmas condições que aquela que haviam deixado. Assim, os primeiros conflitos entre a filosofia e a cidade ( a pólis) – que iriam marcá-la para sempre – têm início nesse transplante das ideias jônica para a Magna Grécia. Em segundo lugar, colocou os exilados jônicos em contato com uma cultura que havia desenvolvido a oratória ou retórica, “um dos produtos mais característicos da Grécia ocidental”, conforme Burnet. Em outras palavras, colocou a filosofia em contato com um dos efeitos da palavra dialogada e leiga dos guerreiros: a dialética. Esse efeito será menos visível em Pitágoras, mas será decisivo em Parmênides de Eleia.”

“O outro fenômeno histórico-cultural relevante no período é a nova religiosidade que se espalha pela Grécia continental – na Ática – vindo da Trácia, alcançando a Magna Grécia e atingindo todo o mundo helênico. Essa religiosidade é completamente diferente daquela existente na Jônia, onde predominava a religião homérica. Ali, como observamos, a religião se naturalizara e, racionalizada em mitos mais sofisticados, pudera ser continuada e desfeita pela cosmologia. A nova religiosidade, ao contrário, fundada no culto de Dionisos, na presença de profetas inspirados e taumaturgos, atingiu seu apogeu com a fundação de comunidades e confrarias religiosas voltadas para os mistérios órficos, sobretudo na Magna Grécia. É a religião dos Mestres da Verdade – do poeta inspirado, do vidente inspirado, do rei de justiça – , reunidos em confrarias de iniciados nos mistérios e que têm seu patrono em Orfeu, aquele que desceu ao Hades (reino dos mortos) e viu a verdade (alétheia). Os mistérios órficos são, fundamentalmente, rituais de purificação para que a alma do poeta, do vidente e do legislador não seja submetida às águas do esquecimento (Léthe) e não equeça o que lhe diz o deus. Esses rituais de purificação – as orgias – se baseavam na crença na imortalidade da alma, conseguida após muitas reencarnações ou transmigrações, e a finalidade ritualística era purificar a alma do iniciado para livrá-lo da “roda dos nascimentos”.

“As crenças órficas podem ser resumidas nos seguintes pontos principais: 1) há no homem a presença de um princípio divino, ou melhor, de uma potência divina (o daímon), entidade que governa o destino da alma de cada um e que, com a alma, vem habitar em um corpo em consequência de uma culpa originária; 2) a alma existe antes do nascimento do corpo e subsiste depois da morte corporal, reencarnando-se em corpos sucessivos ou em nascimentos sucessivos cuja finalidade é purificá-la da culpa, libertando-se desses renascimentos quando estiver inteiramente purificada; 3) a vida órfica, ou iniciação aos mistérios sagrados, desenvolve práticas e ritos que ensinam a alma a ouvir os conselhos de seu daímon, asseguram sua purificação e podem livrá-la da “roda dos nascimentos”; 4) aquele que não se purifica, pagará por suas faltas incessantemente, até o fim dos seus dias, a punição estando na impossibilidade de não renascer continuamente em corpos sucessivos; 5) porém aquele que se inicia nos mistérios e segue os ritos, não só se purifica, mas prepara-se para recompensas na vida futura imortal, pois o destino dos homens é “estar de volta ao divino”, uma vez que cada um é habitado por um daímon. Saber padecer e dispor-se a se purificar constitui a educação e o itinerário da alma para realizar seu destino segundo a justiça, reparadora de todas as culpas.”

“A alma, tendo uma origem divina e sendo imortal, deve tomar consciência de si mesma, elevar-se pela purificação para fazer jus à imortalidade que os deuses lhe concederam. Exige-se que a alma permaneça pura e não se deixe contaminar pelas impurezas do corpo (matéria mortal perecível), que se exercite na pureza, graças a uma vida de elevação espiritual (áskesis) e aos rituais de purificação (kátharsis). A religião deixa de ser uma religião da exterioridade, isto é, do culto aos deuses para tonar-se uma religião da interioridade, isto é, da ascese moral e da catarse da alma, hóspede passageira do corpo mortal.”

“A religiosidade dos mistérios órficos irá expandir-se nas colônias gregas e na Grécia continental, reavivando o culto a Dionisos, de um lado, e dando um novo conteúdo ao culto de Apolo Delfos ou religião délfica, de outro. No pórtico do templo de Apolo, em Delfos, surge a máxima inscrita na pedra: “Conheça-te a ti mesmo”. Desenvolve-se a doutrina da sophrosyne e a exigência de que o homem não perca os limites do humano. Em outras palavras, os mistérios órficos fazem com que a religião homérica seja transformada, pois, tanto do lado do culto de Dionisos como do ldo do culto de Apolo, a preocupação com a alma, com a interioridade, torna-se mais importante do que o culto externo aos deuses. A religião homérica cultuava os deuses; a religião órfica purifica a alma humana.”

“O lado dionisíaco e o lado apolíneo da cultura grega aparecem pela primeira vez, exprimindo a luta entre o sentimento trágico da vida (dionisíaco) e o sentimento racional da natureza humana (apolíneo). É nesse novo contexto que nasce a Escola Pitagórica ou o pitagorismo, na Magna Grécia.” (CHAUI. 2002. pp. 64-66)

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